2014/04/06

“Coragem hoje, abraços amanhã.” Conceição Matos e Domingos Abrantes

 
 Anabela Mota Ribeiro (Texto) e
 
 
Casaram em 1969. Mas antes disso tiveram uma vida. E depois de 74 tiveram outra. E antes dessas tiveram vidas paupérrimas, onde crescia a revolta e, estranhamente, havia espaço para a felicidade. Conceição Matos e Domingos Abrantes usam nomes ternos para chamar o outro. Nomes que surpreenderiam quem os conheceu, de aço, na luta antifascista.
….
Quando diz que se ligaram, quer dizer que começaram a viver juntos?
DOMINGOS — Sim, tornámo-nos marido e mulher. Não no papel, mas pronto. Instalámo-nos provisoriamente numa casa de camaradas legais. Depois alugámos casa na Amora, na Costa da Caparica e no Montijo.
Ligaram-se depois da sua fuga de Caxias no carro blindado de Salazar que tinha sido oferecido por Hitler (1961). Falaremos da fuga mais tarde. Quando é que casam?
CONCEIÇÃO — Casámos em Peniche, em 1969.
DOMINGOS — No tempo do fascismo, como legalmente não éramos casados, ela não me podia visitar. Estivemos quase cinco anos sem visitas.
 
Tinham alguma maneira de comunicar?
DOMINGOS — Naturalmente cifrada.
CONCEIÇÃO — Uma vez, eu estava presa em Caxias, ele em Peniche. O Domingos tinha escrito estas palavras: “Na minha frente, tenho a fotografia dela. A vida a seu lado era mais bela e mais fácil. Quero-lhe muito, muito, muito. Transmite-lhe beijos e a gratidão do meu amor profundo.” Não falava em nomes, nem meu, nem dele. Só por isto, não me deram a carta. No entanto, sabiam perfeitamente que éramos marido e mulher.
Como é que se está quase cinco anos sem ver a outra pessoa, sem um contacto directo (a vossa comunicação resumia-se a cartas enviesadas), e se consegue manter um contacto com a cabeça do outro, o coração do outro, o mundo do outro?
DOMINGOS — Conhecemo-nos numa determinada circunstância, sabíamos os riscos que corríamos, estávamos preparados. A ligação afectiva ou existe ou não existe. A nossa era forte.
Como é que pensava nele (o Domingos preso, a Conceição cá fora)? A segunda prisão do Domingos é de 65 a 73.
CONCEIÇÃO — Estava sempre a pensar nele. Sabia que não o podia ver, mas ia todas as semanas a Peniche. Tentar. Estava com as outras famílias. Angariava coisas para os presos, assinaturas para protestar no Ministério da Justiça.
Fazer isso era uma maneira de estar ligada a ele.
CONCEIÇÃO — A ele e à luta e às outras pessoas. Tínhamos de ver qual era o piso que tinha mais dificuldades, mandar coisas para o pavilhão que tivesse mais faltas. Todas as semanas ia com a minha madrinha ao supermercado. Ela vivia bem e perguntava-me de que é que precisavam. Queijo, isto e aquilo. Muitas vezes, coisas que eram para o Domingos não chegavam ao Domingos.
... 
Era um tempo de mortalidade infantil muito alta. Os seus irmãos morreram crianças?
CONCEIÇÃO — A minha mãe teve 16 filhos. Eu conheci sete, contando comigo. Sobreviveram cinco. Morreram de doenças e necessidades. Mais tarde fiquei tuberculosa. Estive internada no sanatório, três meses. Tinha 18 anos. Consequência da vida difícil que estava para trás. Outra coisa que não disse: era um meio em que porta sim, porta sim, havia gente do partido. Não era preciso dizer Partido Comunista. Era aquele.
DOMINGOS — A vida nos bairros operários era terrível. Leite?, já era adulto quando bebi leite pela primeira vez.
Com que é que sonhavam quando eram crianças?
DOMINGOS — Isto hoje será difícil de entender, mas considero que tive uma infância feliz.
CONCEIÇÃO — Eu também.
DOMINGOS — Os meus pais eram pessoas paupérrimas, mas eram capazes de fazer todos os sacrifícios para dar pequeninas coisas aos filhos. A minha mãe era uma mulher de tipo prático. O meu pai era mais racional, com moral elevada. No Natal púnhamos os sapatinhos na chaminé.
CONCEIÇÃO — Nunca pus.
DOMINGOS — Um Natal, o meu pai disse: “Não ponhas o sapato que não vai aparecer nada.” Não acreditei. No dia seguinte, não estava lá nada. Porque é que digo, então, que foi uma infância feliz? Os pais saíam para as fábricas e os miúdos viviam em bandos. Jogávamos à bola, íamos para a praia (as docas). O dia inteiro entregues a nós próprios. Um grande espírito de solidariedade. Uma marca destes bairros: a solidariedade entre vizinhos.
O que era o seu pequeno-almoço quando era criança?
DOMINGOS — Um café de chicória com pão. Manteiga, não me lembro de ter comido.
CONCEIÇÃO — Em minha casa, café de cafeteira. Ficava a borra no fundo. A minha mãe já tinha alguma idade e nós dizíamos: “Ah, mãezinha, passámos tanta fome.” E ela: “Filhos, não digam isso. Nunca vos deixei passar fome. Encheram sempre a barriguinha de sopa.” Não era a sopa que hoje comemos..., grossa, com feijão. Era um caldo com meia dúzia de hortaliças.
DOMINGOS — Uma vez o meu pai foi despedido. Sensação terrível. É como desabar um prédio. Posso imaginar, hoje, a situação de muita gente. Eu, felizmente, nunca passei por isso, mas havia miúdos do meu bairro que iam à Sopa do Sidónio.
….
 
Sabemos que não quebraram na cadeia, não falaram. Pergunto-me sempre onde é que estas pessoas se fizeram tão resistentes, tão valentes.
CONCEIÇÃO — Não sabia que era valente. Vou contar-lhe uma história. Tinha uma amiga no Barreiro que era muito combativa. Um ídolo. Íamos juntas para as manifestações, ela sempre na primeira linha. Entretanto, soube que tinha sido presa e que tinha falado. “Se ela falou, que é que vai ser de mim?” Comecei a ter tantas dúvidas... Sou presa, 1965. A PIDE arromba a porta com pé de cabra, entra, pistolas apontadas ao meu peito. “Mãos ao ar!” Eu tive a certeza (não podia ter a certeza..., mas tinha a certeza) de que não ia falar. Uma coisa em mim...
Era a zanga, a fúria contra os pides? O que é que crescia em si e a fazia pensar que não falaria?
CONCEIÇÃO — Não podia trair o partido. Não podia falar de outras pessoas que, além do mais, também iam ser torturadas.
Como é que o Domingos sabia que era valente?
 
DOMINGOS — O termo “valente” não sei se é adequado.
Não? Não se trata de valentia?
DOMINGOS — Já perguntaram à Conceição se se considerava uma heroína. É uma questão de dever. Uma pessoa que é presa tem um dever. Assumiu um compromisso para com os seus camaradas, os seus ideais, tem o dever de os defender.
Na sua primeira prisão, em 1965, foi alvo de uma violência e uma tortura humilhantes. Foi interrogada na António Maria Cardoso, esteve em Caxias e depois foi novamente interrogada na sede da PIDE. Como é que era vista dentro da cadeia pelas outras camaradas?
CONCEIÇÃO — Com um certo respeito. Estive muito tempo isolada. Fiquei 17 dias numa cela, sem nada.
Como sabe que foram 17 dias?
CONCEIÇÃO — Com a unha, riscava os dias num armário. Estava todos os dias a pensar: “Quando é que me vêm buscar?” Vi passar uma carrinha e pareceu-me ver o Domingos.
DOMINGOS — Ela não sabia que eu estava preso.
CONCEIÇÃO — Parecia a cara dele, mas estava careca.
DOMINGOS — Tinham-me rapado o cabelo.
CONCEIÇÃO — Depois da tortura do sono, espancamento, de me obrigarem a fazer as necessidades no chão, de serem limpas com a própria roupa... Iam despindo a minha roupa, peça a peça. Queriam obrigar-me a levar a roupa suja para a casa de banho, mas não levei.
Obrigaram-na a urinar e defecar na sala de interrogatório. Quanto tempo durou esse interrogatório?
CONCEIÇÃO — Três dias e três noites. Uma dizia: “Tenho vergonha de ser mulher. Não vai à casa de banho porque não quer. Fale e pode ir.” Logo, eu é que era culpada de não ir à casa de banho. Voltei para Caxias. Ouço na cela a bater na parede. Sabia que se comunicava assim. Nas pancadas perguntaram: “Tens um selo que vendas a um camarada nosso?” O que perguntavam logo: quem és tu?, onde foste presa? Disseram-me que no Montijo tinha sido preso um camarada muito responsável. Comecei outra vez a abanar... Se calhar o Domingos estava mesmo preso. Mas não tinha certezas nenhumas. “Foste torturada?” Contei. E espalharam.
Incomodou-a que se soubesse?
CONCEIÇÃO — Não, não incomodou. Até foi bom. A minha família não sabia de mim. Perguntaram: “Falaste?”, “Não”, “Coragem hoje, abraços amanhã.”
DOMINGOS — Há agora uma peça de teatro com este título.
Essa frase era só uma saudação ou também funcionava como senha?
CONCEIÇÃO — Era só uma saudação. (Sabes como é que tive a certeza de que estavas preso? Pela Sofia Ferreira [dirigente do partido], que passou por mim no corredor e me disse.)
A PIDE sabia que era comum, com a tensão emocional, que aparecesse a menstruação. No documentário de Susana Sousa Dias, 48, várias mulheres falam nisso. Era uma humilhação de género.
CONCEIÇÃO — Eu tive a menstruação. E não tinha com que me limpar. O Tinoco dizia: “Ele está muito preocupado que lhe venha a menstruação e não tenha pensos higiénicos.” Ele — o Domingos. Os espancamentos (e tive muitos), a gente aguenta. Os pontapés, os murros, o flash nos olhos. Agora, aquelas torturas morais... a mim doeram-me muito mais. Doeu-me terem-me despido à frente daquelas pessoas. Entraram todos, dez. Tentei esconder-me atrás de uma mesa, mas a pide Madalena empurrou-me para o meio da sala. Isto depois de me espancar: ‘Fala, sua puta. Não te rias’ Chora, tens de chorar’.” Queria obrigar-me a chorar!
E nunca fraquejou. Pensou em quê? Apoiou-se em quê?
CONCEIÇÃO — Lembrei-me de um livro que tinha lido há pouco, Arco-Íris, da Wanda Wasilewska. Era um livro sobre uma moça na estepe, grávida, a baioneta atrás. Comecei aos gritos: “Um, dois, três, quatro, dez. Dez monstros, dez canalhas, bandidos. Mas o povo há-de vingar-se.”
Foi diferente na segunda vez em que foi interrogada?
CONCEIÇÃO — Dessa vez, despiram-me completamente. Na primeira vez, tinha ficado em combinação. Passados uns dias mandaram-me a roupa suja num papel pardo. Tive de a lavar no lavatório. Não tinha mais nada para vestir.
DOMINGOS — Aquilo é passado. Interviemos numa revolução, vimos o resultado de uma luta. A realização de um sonho ajudou a superar o que correu mal. O 25 de Abril restituiu-nos a vida. Passámos a ser um casal normal. Vamos ao cinema, aos comícios, temos convivências, vemos a família. Um revolucionário, a sua alegria é o empenhamento. Fomos felizes, à nossa maneira, nesta batalha.

1 comentário:

Maria Eu disse...

Comovi-me, hoje à tarde,ao ler a entrevista na Revista do Público!
Um testemunho fantástico que deveria ser lido por todos os Portugueses!

Beijinhos Marianos! :)