2013/01/07

O NAM falou dos exílios no VáVá


O momento, a hora, o sol esquivo mas a ajudar, acenos, abraços, o VáVá, memórias de braço dado com o odor do cafezinho volteando por cima das mesas, a Helena Pato, a Lúcia Ezaguy, o Artur Pinto, a Mané Ricardo, a Teresa Melo Sampaio e o Coronel Luís Sequeira que não via há tanto tempo!, eu a entrar e a não entrar para dar um beijinho à Flor Pedroso que ia ouvir o tio Pedroso Marques coronel da revolta de Beja, o Jorge Martins que é historiador a moderar ainda calado, a Luísa Corte Real que a Manuela Almeida tratou por Luísa Abreu e confundiu a Maria Machado que não sabia que o falecido marido era Abreu e a Helena Cabeçadas, a Manela e o Camacho, és da família do Brito Camacho? Não, parece que não, a Maria a puxar-me lá para dentro e eu cá fora na explanada a lembrar-me do VáVá de antigamente, a Noémia que não vinha e depois veio e julgava que era só às 6 horas mas era às 4 e assim não foi a primeira a falar e o primeiro a falar foi o António Melo que primeiro leu o papel que o António Almeida enviou pela Manela e a seguir contou-nos o seu exílio e como se aprendem coisas lá fora sobre cá dentro e que não esquecem. Quando ele findou e terminaram as palmas contentes com o seu exílio levantou-se a Ana Benavente a seu lado e à minha frente, na mesma mesa e disse como ela se exilou desse pequenino e antigo mundo que era o Portugal de sacristia e Santa Comba Dão e disse dela exilada na Suíça e como foi chocante saber que contrariamente ao que lhe ensinaram aqui, os católicos eram os mais atrasadinhos, viu com os seus olhos na Suíça e que afinal os protestantes é que foram e eram a modernidade. Juntou-se às mulheres e aos homens de todos os países, libertou-se e explicou que o Maio de 68 lhe deu uma nova esperança. Na mão o livro dela, Pátria Utópica, dela e do Eurico Figueiredo e dos outros e onde o Medeiros Ferreira revela que “tinha um projeto político para Portugal“ que assim ficava prejudicado com a sua partida para o exílio no verão de 1968, quem sabe talvez não tivéssemos agora o Passos e o Relvas e os amigos de Cavaco do BPN, quem sabe... Se eu fazia ideia que ele tinha um plano para Portugal! e esta gente toda dos exílios sem nenhum plano para Portugal? Depois lá do fundo da sala falou Veiga Pereira, dissemos não se ouve nada e ele disse mais alto e prendeu-nos às suas palavras de largo saber e experiência. Revelou por dentro o exílio de muitos exílios. Segui-se-lhe o coronel Pedroso Marques, sentado à sua direita, que esteve na revolta de Beja, na revolta do Portugal salazarento e viajou por esse mundo de exílios. E o Jorge Martins avisava, ameaçador, só tens mais um minuto e o minuto passava depressa e não deixava ouvir tudo e que era de muito interesse saber. Como a Noémia não chegava a Helena Pato levantou-se e anunciou intervalo para merenda e mais café que algumas trocaram por cerveja e outros pediram um prego e eu estive para pedir um copo de leite como o Joaquim mas pedi afinal outro café com um bolo à pressa.

A segunda parte dos exílios começou com a Noémia de Ariztia que mal chegara durante o intervalo e, sem ter ouvido os outros, julgando-se a primeira a ter de falar protestou: logo eu assim de chofre!? e o Jorge Martins deu ordem para prosseguir que em dez minutos o tempo voa e ela explicou que se exilou do Salazar e depois de uma belas voltas pela Europa casou com o Francisco de Ariztia amigo do Salvador Allende e foi para a terra dele e depois teve de se exilar do Pinochet. O Francisco, que veio com ela, sentou-se no outro lado da sala a observar tudo com um olhar longo como os cinco mil quilómetros que o Chile tem de alto a baixo. Exílio atrás de exílio salvou-se a Noémia com o 25 de Abril e acabou tudo ali no Vá Vá mas só depois da Helena Pato dizer que agora todos os primeiros Sábados de cada mês, ali mesmo, às 4 horas, há mais memórias à nossa espera para nos inspirarmos e melhor corrermos com esta trupe malsã do governo que lança Portugal no “exílio”. Ou ela disse ou eu assim entendi.
______________________
 Um clique em cada imagem. Basta um clique e elas revelam-se-nos em toda a sua dimensão!

Quando a realidade ultrapassa a fantasia

 
Passa por mim no Rossio

Passo por ali todos os dias. Excepto quando vou pela Praça da Figueira e apanho a outra entrada do Metro. Passo por ali todos os dias mas nem sempre ela lá está. Ou nem sempre reparo. Entre o que acabo de fazer, dois quarteirões atrás, na Rua dos Fanqueiros, no escritório sempre igual e o que planeio para as horas que me restam, quando chegar a casa, avanço contra o mar de gente que me atropela e, pensamento errando por largo, não vejo caras e não vejo corações. Por isso ela talvez lá esteja mais vezes. Talvez lá esteja todos os dias. Entre as montras faiscantes da Camisaria Moderna e os apelos da última moda exibidos pela Primaz, ela está acocorada junto ao umbral em cantaria, do número 113, da Praça de D. Pedro IV. No Rossio.
Hoje dei por mim parando, a olhar, quase inconveniente, empurrado pela onda humana que desliza alhe­ia, insensível, a fugir cansada para casa. 
Parei. Voltei atrás. Fingi observar as camisas, os pulôveres, os cachecóis da Primaz. E olhava aquela mulher.
Era uma mulher. Seria uma mulher? Pensamentos desordenados, sentimentos opostos, piedade, revolta... olhava a mulher disfarçadamente e olhei à volta, também.
A mulher, a velhinha, era cega, como se via pela bengala meio caída que só os cegos usam. Tinha pendurada ao pescoço uma tabu­leta. Andei para trás e para a frente, "a ver as montras", até conseguir ler as letras encarnadas em fundo branco de madeira:  ajudem-me sou ceguinha e sofro do coração. Estava sentada, caída, num tripé de lona velha, corcovada, quase um novelo, tombada sobre a direita, rente ao chão. Não se via. Ninguém a via. Por isso tocava uma campainha. Tocava com mão pouco segura, umas vezes aos soluços outras desesperadamente, uma sineta que atraía ( não atraía...) as atenções.
Agora me lembro melhor... aquele som..., aquele som agreste da campainha! agora me lembro  que a "via" mais vezes. Olhei à volta. Reconfortei-me. Parado, como eu, com o espanto no olhar e um estertor na alma, estava ali, também, especado, um homem. Olhei de novo a velha que não parava de badalar sem resultado a estridente sineta. Virei-me então para o homem, cúmplice, para lhe dizer com um olhar, vejam isto! ao que pode chegar um ser humano! porque era disso que se tratava. Um ser humano! E naquela torrente de homens e mulheres que, apressada, a um palmo de distância, corria, ninguém parava, ninguém se indignava, ninguém congeminava, em revolta, deitar governos a baixo, esventrar a ordem social que permite isto, despejar o mundo em toalha limpa e, peça sobre peça, encaixar tudo de novo...

Virei-me para o homem. Mais novo do que eu. Vestia com gosto. Calças de flanela bege a condizerem com uma camisola de malha castanha e um agradável lenço de seda ao pescoço. O homem, passado aquele momento de incredulidade inicial e perce­bendo melhor o exótico, mesmo o ridículo da figura da mulher da campainha, quando a esposa ou namorada já a ele se chegava de dentro da casa de modas - não acreditei - riu, riu, riu francamente, com gosto. E olhava-me para que risse. Talvez com a boa ideia da sineta. Talvez da coleira com a tabuleta de pau. Talvez porque a velha estava tão inclinada para o chão que parecia cair. Ou porque tocava irregular mas desesperadamente a campainha e nem uma única pessoa deitava uma moeda no mealheiro a tiracolo levan­tado desajeitadamente com a outra mão cega.

Meti-me então rapidamente na multidão. E foi provavelmente o homem, aquele homem, talvez sem culpa, mas desapiedado ou inconsciente que me obrigou a escrever, ainda que só mental­mente, enquanto vinha, sardinha em lata e absorto, no Metro, isto que agora aqui vos conto.

25 de Outubro de 1991.
____________________

“Passa por mim no Rossio” era o nome de uma peça de music hall levada ao palco do Politiama, em Lisboa, por La Féria que teve um grande sucesso no início dos anos 90 do século XX. O nome pareceu-me bom para o relato desta inominável tragédia (individual, eu sei, mas tragédia quand même). Lisboa acorria entusiasmada, a divertir-se e isso era perfeitamente compatível com aquela mulher ali, montra de outra Lisboa, sem que ninguém desse por ela. Se soubesse da peça talvez concluisse: bom nome para este meu estabelecimento. 
Não sei quem a colocava ali e a levava. Quem a explorava. Sim que ela - suspeito - devia estar ali a "trabalhar", escrava, para alguma mafia... ou talvez não. Quando me lembro sinto remorsos. Podia ter perguntado na Primaz ou na Camisaria Moderna se alguém sabia daquela mulher. Deveria ter-me interessado pelo caso, afinal era de um ser humano que se tratava. Mas fiz como toda a Lisboa, fui ao Politiama.