2007/08/30

Histórias do Sol nascente



Uma leitora do Puxa Palavra enviou-nos esta fotografia com o título O acordar do estádio e explica que este é o estádio do Odivelas e aquele um Sol que terá pernoitado pelo Parque das Nações e se levanta por detrás da Alta de Lisboa.

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Aproveito a fotografia e a mensagem, acrescento-lhe mais alguma coisa e fica feito o post para o Memórias.

Entre o estádio e o Sol, num baixio invisível na fotografia, corre a Ribeira de Odivelas que em 1967, num outro 25 de Novembro, saltou as margens, avalanche de água e lodo, derrubou e matou. os Bombeiros Voluntários de Odivelas recolheram 64 cadáveres de habitantes ribeirinhos. Gente de poucos haveres, a dormir em casebres, meios escondidos em terras de ninguém, apanhados pela torrente e a escuridão da noite. Salazar tomou medidas drásticas à altura da tragédia deu ordens severas à censura para, nas notícias, não deixar passar nem mortos nem feridos. A ordem (fascista) foi mantida.

Mas a ribeira em si não é má e no seu quotidiano serviu dedicadamente com seu fio de água, desde a fundação, em 1295, o mosteiro de S. Dinis, casa das freiras bernardas, da Ordem de Cister. "As residentes eram filhas da nobreza, que não casavam por não disporem de bens, quando a família não lhes atribuía um dote. Não estando prometidas em casamento a algum nobre, as raparigas recolhiam à sombra protectora dos mosteiros, enriquecidos com as doações dos reis e dos nobres, para aí levarem uma vida segura, em termos económicos."

O tempo foi dando as suas voltas ao mosteiro, distante de Lisboa bem uma hora a cavalo e no reinado de D. João V o Magnânimo, um rei tão piedoso quão concupiscente e desprezível, a vida tinha outra animação dada pelas sortidas noturnas de fidalgos em visita a noviças e freiras mais maduras. O exemplo vinha de cima pois a Madre Paula era nem mais nem menos que a célebre amante do rei, de quem chegou a ter um filho para logo ser desprezada. A missa era ouvida pelo rei e por esta duvidosa "rainha" de uma câmara que se abriu para a frente para o púlpito da igreja, para a hóstia e o cálice e para trás, para o lupanar. Costumes da época. Nada de dramático afinal.

"Em 1834 extinguiram-se as ordens religiosas, durante a Monarquia Constitucional, e em 1902 o convento foi entregue ao infante D. Afonso que nele promoveu a instalação do actual Instituto de Ensino." Colégio interno para filhas de militares.

À tarde, 1971, com sol, o jardim do mosteiro era muito aprazível, pelo silêncio bucólico, pela restrita frequência de dois ou três idosos, um cão e dois gatos das casinhas de rés-do-chão circundantes. Os plátanos de braços retorcidos e torturados por podas a preceito, o coreto, o fio de água a fingir de cascata e na outra ponta do largo um cafézinho minúsculo, sem frequência certa nem suficiente. E nós. Eu a Maria e a Leonor com 2 anos. Era a nossa praia, o nosso cinema, o nosso centro comercial. E mesmo assim só a certas horas e de longe em longe. Mas só até 1972 porque a PIDE/DGS interessada, vá-se lá saber porquê, na minha presença não achou nada de mais interessante que colocar a minha fotografia nos jornais e na televisão e pedir que, por desconhecer a minha morada, alguém lhe desse qualquer pista para poder chegar à conversa comigo. A fotografia era antiga, os leitores de jornais e espectadores de televisão, estavam lá agora dispostos a fazer o trabalho da PIDE, nós lemos as notícias e vimos as imagens. Apenas deixámos de ir ao jardim. E preferir a noite ao dia para saídas de casa.

Nada de dramático afinal. Eram os costumes da época. Que acabariam em 1974.