2006/11/25

O que foi o 25 de Novembro de 1975?

O que se segue é uma adaptação de parte da entrevista que dei ao Público, em 21 de Novembro de 2000.
Nela procuro apresentar o confronto militar do 25 de Novembro como o culminar de um processo político e militar caracterizado pela sucessão de lances e respostas político-militares até um momento de máxima tensão e rotura. E não, portanto, um momento em que após maior ou menor preparação, os contendores em presença desencadeiam um golpe militar. 

-----------------------------
Ambas as partes consideram o confronto militar do 25 de Novembro um golpe da parte adversa. Os vencedores: PS, o centro e a direita com o Grupo dos 9 e os Comandos usam como argumento o facto de o 25 de Novembro ter sido desencadeado pela Esquerda com os paraquedistas que foram na madrugada de 24 de Novembro ocupar as bases da Força Aérea em Tancos, Monte Real, Montijo e o Comando em Monsanto, Lisboa. Os vencidos: PCP, alguns partidos de extrema esquerda, a esquerda militar gonçalvista e a esquerda militar otelista alegam que esse movimento militar era um movimento defensivo face à informação de ataque iminente da Força Aérea que não havia um plano subsequente nem estado maior militar, institucional (Otelo deixou o COPCON, foi dormir e só reaparecu a 25 de tarde, já o confronto estava mais ou menos decidido) ou paralelo ( o SDCI era um serviço de informações e sem condições de posto de comando) enquanto a parte contrária tinha um posto de comando e forças preparadas no Regimento de Comandos, reforçado com a chamada clandestina a fileiras de centenas de ex-comandos. 

Do Público de 21 de Novembro de 2000: 

Raimundo Narciso: "... A minha leitura desses acontecimentos é que a ordem aos pára-quedistas para a ocupação das bases parte da esquerda militar e tem o aval do PCP. Mas o que se esquece é o contexto, o que se estava a passar no próprio regimento de pára-quedistas, e seus antecedentes. O 25 de Novembro é só o culminar de uma situação, uma parada um pouco mais alta que o PCP e esquerda militar não conseguiram sustentar e que foi o momento em que as forças opostas, com um plano de operações prepardo acharam que podiam responder com uma acção vitoriosa. Há uma sucessão de ofensivas e contra-ofensivas, desde Maio, da esquerda revolucionária e das forças que se lhe opõem.
Público: - Pode explicar melhor?
RN - A 19 de Maio, o PS abandona o Governo, a 8 de Julho há uma resposta da esquerda: sai o Documento-Guia Aliança Povo-MFA - que é uma proposta de estrutura de organização política que os adversários apelidavam, de um novo corporativismo. 
- A 10 de Julho, há a tomada do 
jornal "República" (acção de influência da UDP) e como resposta a esta efervescência revolucionária, no mesmo dia, a saída definitiva do PS do Governo. 
- No dia 19 a 
manifestação do PS na Alameda e o pedido para que o primeiro-ministro Vasco Gonçalves se demita. A 8 de Agosto, a esquerda militar e o PCP conseguem impor o V Governo Provisório. 
- Há logo uma resposta: vocês tomaram conta do Governo mas vamos esvaziá-lo de poder. A cúpula do MFA, onde o PCP tinha poder, é reduzida ao chamado 
directório, onde Costa Gomes, Otelo e Vasco Gonçalves não se entendem e a operação salda-se numa derrota da esquerda.
Público.- Pelo meio aparece a FUR...
RN.- A esquerda em desespero pela perda de influência de massas, já com os ataques às sedes do PCP, perda de influência militar e sem possibilidade de aliança com o PS, cria a 
FUR [efémera e tácita aliança entre o PCP e forças "esquerdistas"], uma coisa inédita. Carlos Brito (membro do Comité Central e Comissão Política do PCP) e eu (membro do Comité Central do PCP) passámos uma noite inteira a negociar com a esquerda revolucionária [no Centro de Sociologia Militar com a iniciativa e a presença de militares do MFA mais radical] num ambiente verdadeiramente surrealista. Nesta altura, foram criados no Porto os SUV por militantes do PCP e outros partidos de esquerda, que apareceram como resposta ao saneamento pela hierarquia tradicional, recentemente reposta pela substituição do brigadeiro Corvacho pelo brigadeiro Pires Veloso, dos membros das Assembleias de Dinamização de Unidade. Foi uma explosão, fez-se uma enorme manifestação de civis e soldados no Porto, outra em Coimbra e duas em Lisboa, algo que o PCP considerou que não era de condenar, mas de apoiar. A situação era, na realidade, já de desespero mas a comissão política do PCP avaliou em comunicado, erradamente, que se tratava de um novo fluxo revolucionário. A seguir, em Setembro, há outra resposta que é a assembleia do MFA em Tancos, e em resultado a esquerda militar foi saneada [dos órgãos político-militares e de comandos militares]. Vem o VI Governo provisório. Depois surge o AMI, grupo de intervenção militar influenciado pela direita, e há uma resposta da esquerda, a Rádio Renascença, reocupada por forças da esquerda radical. A 7 de Novembro, os oficiais pára-quedistas vão às instalações da Rádio Renascença e fazem explodir o emissor. Segue-se, a 8, a resposta dos sargentos e soldados pára-quedistas, que recusam a presença na unidade de Tancos do chefe do Estado-Maior da Força Aérea [Morais da Silva] e tomam conta da unidade. No dia seguinte, há a grande manifestação do Terreiro do Paço afecta às forças que se opõem ao processo revolucionário...
P. - Estava-se à espera de um pretexto, de uma casca de banana?
R.
 - Todos os dias havia cascas de banana. A 10 de Novembro, o chefe do Estado-Maior da Força Aérea decide 
retirar os oficiais de Tancos [200?] e isso cria uma situação de sublevação em toda a unidade onde ficam 5 oficiais, os sargentos e as praças com um comando paralelo. A 12, há a manifestação e o cerco da Constituinte. Não quer dizer que as coisas estivessem programadas nos estados-maiores de um e outro campo em confronto. Havia os planos estratégicos: recuperar poder e avançar a revolução e, do outro lado, suster o processo revolucionário, institucionalizar a democracia representativa ou, para as forças de extrema-direita, aniquilar o PCP e instalar um poder musculado. Mas o dia a dia obrigava os estados-maiores políticos e militares a gerir o processo "desorganizado" por mil e uma força civil ou militar, política ou social que marcava o compasso da revolução. No dia 19, o chefe do Estado-Maior da Força Aérea ordena a dissolução da unidade, e dá ordem aos sargentos e oficiais milicianos e do quadro permanente desta unidade da Força-Aéwrea para regressarem às suas unidades de origem no Exército. mas eles não abandonam o quartel que passa funcionar em auto-gestão. No dia 20, o Governo auto-suspende-se.
P.- O golpe podia ter ocorrido aí?
R.-
 A situação podia ter-se precipitado aí, podia ser essa a casca de banana, mas ainda não estavam maduras as condições. Em 21 de Novembro, há um 
juramento de bandeira revolucionário no Ralis [Regimento de Artilharia de Lisboa]. E a 23, há a luta pela conquista do batalhão de pára-quedistas que regressa de Angola. São militares que não viveram a revolução e desconhecem a "guerra" em que os para-quedistas, em Portugal, estão metidos. O bote da polícia marítima que faz o primeiro contacto com o navio que foi decidido não atracar ao cais leva um agente, um civil, do Chefe de Estado-Maior da Força Aérea com uma mensagem para entregar ao comandante da unidade o ten-coronel Almendra, a preveni-lo de que a unidade não vai para o quartel de Tancos e para não deixar entrar no navio os sargentos que iam no bote, agentes dos para-quedistas sublevados de Tancos que pretendiam ganhar a tropa para o seu lado. Depois, nesse mesmo dia, há um comício de apoio ao VI Governo em Lisboa. No dia 25, a tropa pára-quedista está em polvorosa, foi-lhe cortada a água, a luz e a alimentação, acreditando em boatos de que agora é que os "contra-revolucionários" vão dar o golpe.
Nessa noite, há um arremedo de estado-maior da esquerda militar, ainda pouco consolidado, no SDCI, que tem ramificações insuficientes no Copcon e está em contacto com os pára-quedistas. 
Corre o boato que a Força Aérea ia bombardear. Portanto isto é um pretexto melhor ou pior para os "páras" saírem. É uma medida excessiva, porque não corresponde a uma real força, nem do PCP, nem da esquerda militar que não tem comandantes, nem dispositivo suficiente. Sair com um aparato destes pode ser tomado como um acto de guerra. A direita estava preparada e viram que havia condições para dar a resposta. A seu lado têm a legitimidade institucional, têm o apoio do Presidente da República, o que foi decisivo. Do outro lado o que há? Há o desaparecimento do Copcon... "

2006/11/20

O Relatório de Krutchev , repercussões e actualidade"

Colóquio organizado pela Associação Renovação Comunista na Biblioteca Museu da República e da Resistência no dia 7 de Novembro de 2006
Participantes: Carlos Fidalgo – moderador, Carlos Brito, Fernando Rosas, Raimundo Narciso.

Intervenção de Raimundo Narciso:

...Nikita Krutchev conseguiu importantes vitórias mas as suas reformas revelaram-se insuficientes e falhou o intento de colocar o comunismo em boa via. Gorbatchov, 30 anos depois, diria que pegando no testemunho de Krutchev, fez nova tentativa com o mesmo objectivo e… com o mesmo resultado. Com ele fracassou a experiência soviética e o próprio país. Não estou certo que aqui os meus amigos renovadores do comunismo português tenham êxito maior mas apesar de tão temerária ambição desejo-lhes, sinceramente, o maior sucesso.


Funeral de Stáline. Da esq p a dir, 1º plano: Béria, Voroshilov, Krutchev.
Na noite de 24 de Fevereiro de 1956, Nikita Krutchev não quis deixar para o dia seguinte a leitura aos delegados do seu explosivo relatório, verdadeira bomba atómica política, com a qual queria mudar o rumo da União Soviética, exorcizar o seu passado e sem dúvida consolidar o seu poder. Uma reunião do Praesidium do CC realizada no decorrer do próprio congresso, na qual se discutiu a decisão de Krutchev de apresentar o relatório da denúncia do culto da personalidade e dos crimes de Stáline tinha revelado a forte oposição de um poderoso grupo de dirigentes, entre os quais, Molotov, Kaganovitch, Vorochilov.

...Uma das consequências da sua iniciativa viria a beneficiá-lo directamente. A partir de agora as diferenças de opinião, não aquelas que se cinjam à ideologia ou à orientação política mas aquelas que afectem a preservação do poder, deixavam de ser resolvidas com o fuzilamento de quem tinha menos força.

Lembremos que Nikita Krutchev já tinha resolvido com os seus aliados conjunturais o problema Béria.

...Quem era Krutchev, que se atrevia a abalar os alicerces do Estado totalitário e a deitar por terra a imagem do homem cuja evocação ainda, em 1956, fazia tremer os que com ele privaram de mais perto, aqueles que nos últimos tempos da vida de Stáline nunca sabiam se a sua chamada ao Kremlin lhes garantia o regresso a casa ou os destinava à prisão? Era um ucraniano inteligente, extrovertido, sagaz, de pouca cultura, de origem muito pobre a quem a revolução abriu caminho ao sucesso. Começou a trabalhar ainda criança como operário. Foi estudando aqui e ali até atingir o quarto ano de escolaridade e depois já adulto frequentou por insistência sua, nas oportunidades que lhe surgiam, cursos mais de formação profissional que de ciência pura.
Voluntário no Exército Vermelho, activista político e sindical inscreveu-se no partido bolchevique em 1918...

Em 1921/22, período de grande fome, já um quadro político do partido com importância local, trabalha numa mina. As condições de vida são tais que se não é socorrido pelo dono da casa onde partilhava um quarto – ironia do destino, um kulak - teria certamente morrido à fome. O que aliás viria a suceder mais tarde à sua primeira mulher. Fez uma carreira bem sucedida sob a protecção de Lazar Kaganovitch.
Subia a pulso, com uma fé inquebrantável no comunismo e a sua trajectória é paradigmática das oportunidades de ascensão criadas na nova ordem social às camadas mais despossuídas da sociedade.
Em 1934, Krutchev foi eleito delegado ao célebre XVII congresso que ficou conhecido como o “congresso dos vencedores”. E sofreu uma das primeiras machadadas na sua fé sem limites no partido. Kaganovitch já um dos poderosos dirigentes, do círculo próximo de Stáline pede-lhe a ele e outros novatos da sua confiança que na votação risquem o nome de Molotov e Voroschilov, porque era preciso garantir que Stáline fosse o mais votado.
Depois da morte do ditador veio a descobrir-se que ele tinha tido 260 votos contra e não os 6 que foram anunciados enquanto que o mais popular dirigente da época, Kirov tinha tido, de facto apenas 3 votos contra. (1)

...Quem era este “Nikita Krutchev que acabou por ir mais longe que os todos os seus colegas na via da desestalinização” pela “aceitação pessoal de enfrentar o seu passado de estalinista, por autêntico arrependimento, habilidade política, populismo específico,… vontade de voltar à legalidade comunista”?
Era um quadro político que da experiência comunista da Rússia só conheceu o estalinismo. Que em 1937 fora eleito, ou nomeado, 1º secretário do comité da região de Moscovo e discursava assim numa conferência pública:
“Os trotskistas levantam as suas mãos traidoras contra o camarada Stáline, Stáline a nossa esperança; Stáline o nosso desejo, Stáline: a luz da humanidade avançada e progressista. Stáline a nossa vontade, Stáline: a nossa vitória” (2)
...Quando o ditador morre Krutchev é a 5ª figura do poder tendo à sua frente e por esta ordem Malenkov, Molotov, Beria e Kaganovitch.
Após a morte de Staline o Praesidium do CC nomeou Malenkov chefe do Governo e 1º secretário do CC. Decidiram acabar com o lugar de secretário-geral que fora criado para Stáline e que foi depois recuperado por Brejnev. Começou a ser restabelecido o poder dos órgãos do partido, CC e Praesidium do CC sobre o todo poderoso serviço secreto (Krutchev diz nas suas Memórias a página 66 que havia 1 milhão de agentes) mas desde logo se iniciou a arrumação de poderes e hierarquias no Praesidium. Todos sentiam que a sua segurança era precária enquanto Béria, com o controlo dos serviços secretos, executante e cúmplice mais directo de Stáline em incontáveis crimes andasse por ali.
...Béria foi julgado com um julgamento farsa igual aos que ele organizava e com os mesmos resultados. Foi fuzilado.
O método de Stáline para lidar com os seus camaradas ou rivais acabou com a eliminação de Béria. A acusação usou ainda a retórica e utensílios legais do ditador e foi condenado como inimigo do povo, espião do estrangeiro e outras convincentes acusações do mesmo estilo.
Livre de Béria e dos seus colaboradores que, estes sim, foram apenas presos, o poder foi sofrendo ajustes e em Setembro de 1953, sete meses após a morte do ditador, o Praesidium eleva Krutchev a 1º Secretário do CC, cargo até aí acumulado por Malenkov com a presidência do Governo.

Consequências internacionais

A viragem da política soviética que o Relatório de Krutchev representou se foi grande no plano interno não foi menor no plano internacional.
A maior das suas consequências foi sem dúvida a tese sobre a possibilidade de coexistência pacífica entre Estados com sistemas económicos e sociais diferentes concretamente entre os Estados socialistas e os Estados capitalistas.
Um corolário deste princípio era a aceitação da possibilidade de se evitar a guerra entre os dois sistemas. Era uma nova orientação virada para a paz e o desarmamento que viria a tornar-se numa orientação duradoura da União Soviética apesar de não ter sido suficiente para evitar o crescente confronto entre os dois campos e a “guerra fria”.
Outra tese que não deixava de ter alguma relação com aquela foi a da possibilidade da passagem ao socialismo por diferentes vias entre elas a via pacíficaA alteração do rumo político relativamente a Stáline introduzida por Krutchev apesar de forte resistência do sector conservador e que vinha já dos anos anteriores ao XX congresso manifestou-se no restabelecimento das relações de amizade com Tito e a Jugoslávia na normalização das relações com a Áustria..
Com este país a União Soviética estabeleceu um tratado de paz, no âmbito das negociações com as potências vencedoras da 2ª GM e promoveu a desocupação militar em troca da sua neutralidade.

De acordo com os novos princípios apresentados no XX congresso Krutchev deu início a uma estratégia de distensão militar com os Estados Unidos, de reforço da paz mundial e pelo desarmamento.
As boas intenções chocaram no entanto com a realidade. O campo liderado pelos Estados Unidos não desistia do cerco, político, militar, económico e tecnológico e mantinha como ponto central da sua política a derrota da União Soviética e do comunismo. A situação era tal que em 1965 a ligação aérea entre Moscovo e Havana tinha de ser feita pela rota do pólo Norte e pelo Atlântico porque os aviões soviéticos das carreiras aéreas de passageiros não estavam autorizados a sobrevoar a Europa Ocidental.

A União Soviética não desistia, apesar do acento posto agora na diversidade de vias para ao socialismo entre elas a via pacífica como orientação para a luta dos partidos comunistas e outras forças contra o capitalismo, de se opor por todos os meios incluindo o da força armada à defesa dos regimes sob seu controlo na Europa de Leste.
O comprometimento das direcções partidárias e dos Governos da maior parte destes países, com purgas de sua iniciativa ou impostas por Stáline, era grande e a desestalinização não deixou de ser um processo dramático nalguns destes países.

As novas teses de Krutchev sobre a coexistência pacífica e a diversidade de vias para o socialismo acabaram por se chocar com as posições da China e contribuir, aliás como toda a política anti-estalinista de Krutchev, para o grande cisma comunista resultante do denominado diferendo sino-soviético.
Outro ponto culminante do confronto entre os dois sistemas mundiais e que levou o mundo, como nunca antes, nem depois, à beira da catástrofe nuclear foi a crise dos mísseis com armas nucleares em Cuba. Como se sabe a crise teve como desfecho, no fim de Outubro de 1962, o acordo com Kennedy pelo qual a União Soviética retirava os mísseis de Cuba e os EUA comprometiam-se a não invadir a ilha de Fidel Castro, que aliás se opôs ao acordo, e a retirar os mísseis norte-americanos apontados à União Soviética instalados na Turquia.
Este acordo saldou-se em termos de imagem num revés para Krutchev que aliado ao fracasso da sua política agrícola, o calcanhar de Aquiles de todos os Governos soviéticos, foi aproveitado para o seu afastamento em Outubro de1964.
No capítulo do desarmamento a política de Krutchev acabou por assinalar um êxito importante com a assinatura do Tratado de Moscovo de suspensão das experiências nucleares submarinas e na atmosfera em Agosto de 1963.

Repercussões em Portugal

A nova orientação de Krutchev contra o culto da personalidade de Stáline e o estalinismo em geral também não deixou de ter repercussões em Portugal ainda que relativizadas à condição de um partido que não só não está no poder como luta obrigado a duras condições de clandestinidade.
Na primeira reunião do CC do PCP realizada em Maio de 1956, três meses depois do XX congresso do PCUS, e depois no 5º congresso (Setembro de 1957, Estoril) vai triunfando, influenciada pelo XX congresso, uma orientação política de luta contra a ditadura fascista que substitui a via do levantamento nacional violento, o derrubamento do regime pela força, pela via pacífica. Ora um levantamento nacional pacífico ora através de eleições.
É de acordo com esta linha que em 1959 o PCP promoveu a “Jornada nacional pacífica pela demissão de Salazar”, após as eleições farsa de 1958, em que o general Delgado foi sem a mais leve surpresa “derrotado”. Essa jornada nacional pacífica incluía um abaixo assinado que por acaso também assinei e reuniu, se bem lembro, a assinatura de 402 corajosos portugueses seguramente tão descrentes da eficácia de tal exorcismo como eu.

Esta orientação “pacifista” para o derrubamento do regime do “Estado Novo” foi muito causticada por Álvaro Cunhal, após a sua fuga da cadeia de Peniche, em Janeiro de 1960, no documento O DESVIO DE DIREITA NO PCP NOS ANOS 1956-1959, e foi substituída no 6º congresso (Setembro de 1965, Kiev) pela linha que propunha a via insurreccional armada para o derrubamento da ditadura no célebre documento O RUMO À VITÓRIA.

Também estimulada pelo novo alinhamento com o PCUS de Krutchev se procurou identificar no PCP uma tendência para o culto da personalidade de Álvaro Cunhal, então preso, que viria a apagar-se, tal como nascera, sem grande ruído, por minguada consistência.

As repercussões do XX Congresso e de Krutchev à frente da URSS também se poderiam medir pelo desaparecimento dos malefícios da continuação do culto religioso de Stáline entre nós. Pelo menos a mim, tão pouco atreito a rezas, poupou-me o risco de ter de o incensar como “pai dos povos”.

Que futuro para o Socialismo?

Que espécie de socialismo é este? Não sou eu que interrogo. É Krutchev no fim da sua vida, em prisão domiciliária, relativamente benévola, nos arredores de Moscovo, na última página das suas Memórias. E continua: “o paraíso é um lugar para onde as pessoas querem ir, não é um lugar de onde se foge. Mas as portas deste país continuam fechadas e trancadas. Que espécie de socialismo é este? Que espécie de merda é esta se temos de manter o nosso povo agrilhoado? (1)

Isto remete-nos para outra ordem de questões e questões fundamentais.

O comunismo galvanizou milhões de pessoas porque oferecia um mundo melhor do que aquele que aos trabalhadores estava reservado pelo capitalismo. A difícil luta pelo socialismo e o comunismo tinha para lá do fim da exploração do homem pelo homem, das metas a cada um conforme o seu trabalho, ou no horizonte a cada um de acordo com as suas necessidades, para lá da conceptualização do fim da opressão e da alienação do homem, o socialismo tinha uma justificação imediata simples: uma vida melhor do ponto de vista material e espiritual para os trabalhadores e a população em geral.
A União Soviética e o “campo socialista” apesar de enormes realizações na industrialização do país, na educação, na saúde, na ciência, nas armamentos, na conquista do espaço, não conseguiu revelar-se no plano económico e nos ritmos de desenvolvimento, em especial nos desafios da sociedade pós-industrial, superior às sociedades capitalistas mais avançadas.

O homem que a retórica marxista-leninista considerava estar no centro de tudo. De toda a actividade económica, social e política, não passou no estalinismo de figura de estilo e depois um pouco melhor mas não o suficiente.
A Rússia em 1917 era um mar de camponeses saídos da servidão apenas há meio século donde emergiam algumas ilhas industrializadas e o calcanhar de Aquiles do poder soviético foi não ter conseguido nunca resolver satisfatoriamente, a não ser por pequenos períodos, os problemas económicos principalmente no âmbito da agricultura e dos bens de consumo corrente que garantissem uma qualidade de vida superior à dos trabalhadores dos países da Europa Ocidental ou dos EUA..
Daí que momentos de viragem tão dramáticos como os de 1927/28 com a imposição administrativa da colectivização e “deskulakização” dos campos, o saque do trigo e outros produtos aos camponeses, estejam ligados à incapacidade de abastecer o país com pão e produtos agrícolas, dificuldades que chegam até ao XX congresso e irão ciclicamente continuar.
Com Stáline e mesmo depois a economia foi dirigida por métodos administrativos até ao absurdo com a substituição das leis económicas pelo voluntarismo.
Krutchev tentou descentralizar a economia e atacar os problemas agrícolas mais urgentes, e retirar a economia do colete de forças administrativo e voluntarista mas não conseguiu encontrar a essência, as causas profundas dos insucessos nem um rumo coerente para os vencer.
A substituição de Krutchev em 1964 com um golpe palaciano que viria a ser repetido sem êxito – ou com excesso de êxito – contra Gorbatchov, em 1991, teve para além de motivações imediatas de âmbito político e luta pelo poder, causas mais profundas de ordem económicas e em especial a crise na agricultura com o desvanecimento das esperanças no celeiro das terras virgens, uma área de muitos milhões de hectares que não levou em conta as objecções dos cientistas soviéticos que já então adivinhavam o impacte ambiental negativo que levou rapidamente ao desastre.

Muitas questões coloca o XX congresso do PCUS aos comunistas mas muitas mais colocam as reformas de Gorbatchov e o fim da União Soviética precedido pelo fim do socialismo nos países da Europa do Leste e pelo que se passa na China, em Cuba ou na Coreia do Norte.
Teria sido possível avançar para uma sociedade verdadeiramente socialista persistindo na via de reformas encetada por Krutchev?
Teria sido possível a Gorbatchov com medidas mais ousadas ou cautelas mais previdentes encontrar uma saída diferente para a Rússia?



E os problemas nacionais que se dizia estarem resolvidos!? Tão insistentemente que dava que pensar. Seria consistente a tese de Lenine, de que o socialismo era possível vencer a partir do “elo mais fraco da cadeia dos países capitalistas na era do imperialismo”? A partir da Rússia atrasada contrariando a ideia de Marx de que a revolução só poderia triunfar a partir do conjunto dos países mais desenvolvidos do capitalismo?

Na minha opinião os impasses do socialismo real têm na sua base a incapacidade demonstrada para resolver as questões de desenvolvimento económico que possibilitassem um nível de bem estar maior e mais harmonioso, isto é com justiça social, superior ao capitalismo. Mas a chave para resolver este problema de fundo está, no meu modesto entendimento, na super-estrutura política, está na liberdade individual. A superação das dificuldades económicas pressupõe o contributo livre e criativo à escala de massas. Sem mais e melhor democracia sem mais e melhor liberdade individual do que aquelas que gozam as grandes massas da população nos países capitalistas, a sociedade que se quer socialista não poderá vencer.
Não sei se era possível equilibrar a defesa da liberdade e da participação democrática com a defesa do Estado do cerco e da guerra que lhe era movida pelo campo imperialista.
Por outro lado como é do conhecimento, não diria geral, porque não é, como se vê por aí, mas de conhecimento muito generalizado, os ideias progressistas de reforma social, chamemos-lhe socialismo, têm de abordar uma realidade social completamente distinta das dos tempos de Marx, Lenine, Krutchov, ou mesmo de Gorbatchov. E a utensilagem teórica se não dispensa o conhecimento crítico da História não pode ser a mesma para o comboio a vapor ou o motor eléctrico que para a do mundo globalizado, do conhecimento, da informação, da Internet do telemóvel. Não sei se a solução desponta dos estudos de Penin Redondo que tenho curiosidade em conhecer ou dos estudos de teóricos de vanguarda por esse mundo além. Para tantas dúvidas deixo o esforço das respostas aos renovadores comunistas portugueses que tiveram a amabilidade de me convidar.

Notas: Os títulos "Consequências internacionais" e "Repercussões em Portugal" não foram lidos no colóquio, como lá informei, devido à extensão do texto.

(1) - Memórias de Krutchov – As gravações da Glasnost – Editorial Inquérito (1990 by Jerrod Schecter), página 42.

(2) Le dossieer Russie 1 Marcel Liebman Edit. Marabout Université , com outros,1966, Editions Gerard& Cº Verviers. pág.165

Outras fontes consultadas:
Relatório de N. Krutchev ao XX congresso do PCUS. Editions Novosti, 1988.
Operações Especiais de Pavel Sudoplatov e Anatoli Sudoplatov. Publicações Europa- América 1994.
Let History Judge de Roy Medvedev – 1971, Editions Alfred A. Knopf.
Le Phénomène STALINE – vários autores soviéticos Editions NOVOSTI Moscovo 1988.
Historia de la URSS – Editorial Progresso Moscovo 1977. Vários autores.
O Livro Negro do Comunismo – Quetzal Editores Lisboa/1998

Imagens: 1ª - Da esquerda pora a direita, em primeiro plano Béria, Voroshilov (?) e Krutchev. 2ª Funeral de Stáline. 3ª Kamenev e Lenine, 4ª Bukarini. 5ª Stáline. 6ª Krutchev com Kenedy. 7ª Cartaz da grande "diva" Maya Plissetskaya. 8ª Estação do metropolitano de Moscovo, Komsomolskaya. 9ª Cartaz do Sputnik, o primeiro satélitre artificial da terra. 10ª Dias Lourenço, dirigente do PCP, que assistiu ao XX congresso do PCUS. 11ª Palácio dos Congressos no Kremlin XXVII Congresso do PCUS 12ª Vista da Torre Spasskaya do Kremlin de Moscovo com a igreja de São Basílio na Praça Vermelha, à esquerda.