2005/11/01

O terramoto de Lisboa (3)

As Igrejas

"...ARRUINOU e destruiu o terramoto e incêndio a melhor parte da populosa cidade de Lisboa. O terreno destruído pelo fogo ocupou mais de uma légua de circunferência, pelo círculo que se descreve. Principiando da Igreja de São Paulo, decorreu por uma grande parte da marinha: desde esta igreja vem o círculo pelos Remolares, Corte-Real, Ribeira das Naus, Terreiro do Paço, Ribeira da Cidade, Cais de Santarém até ao Chafariz d’el-Rei; daqui sobe ...

Nesta circunferência destruiu o fogo inteiramente os bairros chamados da Ribeira, da Rua Nova e do Rossio, e grande parte dos bairros dos Remolares do Bairro Alto, do Limoeiro e de Alfama, que eram os mais ricos populosos dos doze em que então se dividia a cidade.

Nesta grande parte de Lisboa consumida pelo fogo foram compreendidas inteiramente a santa Igreja Patriarca e as freguesias da Basílica de Santa Maria (antiga catedral de Lisboa), de Santa Maria Madalena, de Nossa Senhora da Conceição, de São Julião, de Nossa Senhora dos Mártires, do Sacramento...

Neste recinto ficaram reduzidos a cinzas os sumptuosos conventos da Santíssima Trindade, de Nossa Senhora do Monte do Carmo, de São Francisco, de Nossa Senhora do Rosário dos Irlandeses, do Espírito Santo, de Nossa Senhora da Boa-Hora, de Corpus Christi, de São Domingos e de Santo Elói, com as suas majestosas e bem ornadas igrejas...

...se queimou a sumptuosa Igreja de Santo António edificada na antiga casa, em que o mesmo santo nasceu, com a magnífica e bela casa que antes da divisão da cidade servia para as conferências do Senado da Câmara; e na mesma igreja muita e bem lavrada prata, e ricos ornamentos, de que se achava enriquecida. ... havendo o fogo na igreja sido tão violento que derreteu toda a prata, bronze e outros metais, que nela achou". [o relato prossegue com o registo de muitas dezenas de igrejas destruidas]

E os palácios

"...Os palácios queimados foram: o Paço Real da Ribeira que, sendo principiado pelo senhor rei D. Manuel e continuado sumptuosamente por Filipe II, se havia depois acres centado com dilatadas e formosíssimas galerias de soberba arquitectura, e ultimamente com a real Casa da Opera, obra admirável; o Palácio de Corte-Real (que já havia padecido o incêndio que fica dito no tomo XII, a fol. 64), com o tribunal da Casa do Infantado; os palácios dos duques de Bragança (que servia de Tesouro), de Lafões, de Aveiro, de Cadaval; dos marqueses de Valença, de Marialva, de Angeja, de Fronteira e de Cascais... [a lista continua com muitos mais palácios]

Padeceram a mesma desgraça os edifícios de Alfândega Real, Casa da India, Vedoria, Consulado, Contos do Reino, Sete Casas, Terreiro do Pão, Ribeira das Naus e armazém dela, Casa do Tesouro, ao Arco da Consolação...

e os tribunais do Desembargo do Paço, Junta dos Três Estados, Conselho da Fazenda, Conselho Ultramarino, Mesa da Consciência, Casa de Bragança, Contadoria-Geral de Guerra, Tenência, armazéns com as suas grandes secretarias, e as de Estado do Reino, Guerra e da Marinha, cujos tribunais estavam no recinto do Paço, nos quais se perderam cartórios numerosíssimos livros e papéis, com grande detrimento da fazenda real e da dos particulares... "

E as preciosidades

ENTRE as muitas preciosidades que o fogo consumiu, foi muito sensível aos eruditos a perda de muitas e numerosas livrarias. Tem o primeiro lugar a biblioteca real que era numerosíssima e selecta: o senhor rei D. João V a tinha aumentado com grande número de livros modernos, e todos os antigos que se descobriram pela Europa; e uma grande cópia de manuscritos, assim originais como cópias bem escritas, tudo efeitos da sua sabedoria e magnificência.
A do marquês de Louriçal enchia e ornava quatro grandes casas, e era selecta em livros raros e excelentes manuscritos. Tinha sido formada pelos sábios condes da Ericeira, e ultimamente aumentada pelo conde D. Francisco Xavier de Meneses, cuja erudição ainda hoje admira, não só Portugal, mas toda a Europa.
A biblioteca do Convento de São Domingos estava em duas grandes casas e tinha muitos livros raros e grande número de manuscritos, que para ela deixou o erudito beneficiado Francisco Leitão Ferreira. Foi obra do padre frei Manuel Guilherme, que a constituiu pública com assistência de dois bibliotecários e renda grande para o seu aumento.
Na Casa do Espírito Santo havia uma grande e selecta livraria, e outra chamada Mariana, em que se admirava a maior colecção de livros que tratavam de Maria Santíssima obra do padre Domingos Pereira.
Ficaram também reduzidas a cinzas as excelentes e antigas livrarias dos conventos do Carmo, São Francisco, Trindade e Boa-Hora. Tiveram o mesmo sucesso todas as dos palácios que arderam, em que havia algumas muito estimáveis.
As particulares foram muitas, e entre estas era muito preciosa a do inquisidor José Silvério Lobo por numerosa e selecta. Em cinco casas de mercadores de livros franceses, espanhóis e italianos, e vinte e cinco lojas e casas de livreiros portugueses, se consumiram grandes livrarias...

[Extractos de "Memórias das Principais Providências"... de Amador Patrício de Lisboa, 1758]

O terramoto de Lisboa (2)

Continuação do post anterior "O terramoto de Lisboa".

"Continuaram os tremores de horas a horas com menos violência, mas com igual horror, temendo-se que a terra se abrisse com a veemência de tantos abalos. Comunicado o fogo ao castelo correu uma voz que se retirassem todos dos subúrbios da cidade, pelo perigo de pegar à pólvora que ali se achava, e matar os que tinham escapado ao terramoto. Com este susto fugiram quase todos para fora da cidade aquela noite, para uma ou mais léguas.

"Atribuíram-se depois estas vozes a alguns homens malvados, que quiseram ver a cidade desamparada para roubarem o mais precioso que havia nas casas. Causou este boato uma grande ruína, porque, podendo-se em algumas partes atalhar o fogo correu este livremente, destruindo tudo quanto o terramoto havia perdoado, achando-se uma grande parte dos moradores de tão populosa cidade com as suas casas inteiramente consumidas, sem delas poderem salvar mais coisa alguma que suas pessoas.

As religiosas, abertas as clausuras pelo temor das ruínas, que experimentaram os seus mosteiros, procuravam, divididas, ou os ou os campos para o refúgio. Algumas, refugiadas nas cercas dos seus conventos, esperaram clausuradas a misericórdia de Deus. Vagavam por as ruínas os sacerdotes, tanto regulares como seculares, absolvendo a uns, agonizando a outros.

O senhor rei D. José e toda a real família se achavam em uma das reais casas de campo de Belém (excepto o senhor infante D. Manuel que habitava o real Palácio das Necessidades), que não tiveram ruína, e saíram para o campo, onde se formaram grandes barracas de campanha, em que viveram alguns meses, enquanto se não fez o Palácio da Ajuda fabricado de madeiras, que depois ardeu em 10 de Novembro de 1774,. onde em seu lugar se fez o grandioso palácio que ainda não está concluído. O senhor infante D. António mandou fazer na real Quinta da Tapada de Alcântara duas barracas de madeira, como diremos quando tratarmos da sua morte.

Passada a primeira noite em fervorosos clamores e continuados sustos, cresceu a aflição em todos, experimentando a falta dos cabedais, que perdiam, e cuidadosos dos parentes, que lhes faltavam; dispersas a maior parte das famílias, choravam uns a falta dos outros.

Continuava o fogo a devorar aquelas coisas, que o terramoto não havia prostrado; e os ladrões, sem temor de Deus, e dos seus castigos, à vista deles entravam pelas casas e delas tiravam os cofres de dinheiro, as jóias e a roupa. Muitas famílias, cujas habitações não arruinou o terramoto, nem destruiu o fogo, ficaram pobres pelos roubos: atribuíram-se estes a muitos forçados das galés, e criminosos, que então saíram das prisões"...

2005/10/31

O terramoto de Lisboa





Amador Patrício de Lisboa, ou (de seu verdadeiro nome) Francisco José Freire, ou Cândido Lusitano, como era conhecido entre os poetas, "ofereceu à magestade fidelíssima de el-rei D. José I, nosso senhor", em 1758 "as Memórias das Principais Providências que padeceu a corte de Lisboa no ano de 1755" e sete décadas depois, frei Cláudio da Conceição, cronista-mor do reino transcreve uma parte da obra e dedica-a ao rei D. Miguel I. (In "Notícias do Terramoto", de Cláudio da Conceição. Editora Frenesi)


"SENDO este terramoto tão estrondoso, e tão memorável, eu devo dar dele aqui alguma notícia, apesar de se haver escrito sobre ele com tanta difusão que, só na livraria da real Casa das Necessidades, se acha uma colecção de doze volumes em quarto; segundo as notícias desse tempo, assim o escrevo.

Amanheceu o dia, em que a Igreja celebrava a festa de Todos-os-Santos, que era em um sábado, sereno, o sol claro e o céu sem nuvem alguma. Pouco depois das nove horas e meia da manhã, estando o barómetro em vinte e sete polegadas e sete linhas, e o termómetro de Reaumur em catorze graus acima do gelo, correndo um pequeno vento nordeste, começou a terra a abalar com pulsação do centro para a superfície; e, aumentando o impulso, continuou a tremer, formando um balanço para os lados do norte a sul com estragos dos edifícios, que ao segundo minuto de duração começaram a cair, ou a arruinar-se, não podendo os maiores resistir aos veementes movimentos da terra, e à sua continuação. Duraram estes, segundo as mais reguladas opiniões, seis para sete minutos fazendo neste espaço de tempo dois breves intervalos de remissão este grande terramoto.

Em todo este tempo se ouviu um estrondo subterrâneo por modo de trovão, quando soa ao longe. Escureceu-se algum tanto a luz do sol, sem dúvida pela multiplicação de vapores, que lançava a terra, cujas sulfúreas exalações muitos perceberam. Foram vistas em várias partes fendas na terra de bastante extensão, mas de pouca largura. A poeira , que causou a ruína dos edifícios, cobriu o ambiente da cidade com uma cerração tão forte que parecia querer sufocar todos os viventes.

A estes impulsos da terra se retirou o mar, deixando nas suas margens ver o fundo às suas águas, nunca dantes visto; e encapelando-se estas em altíssimos montes, se arrojaram pouco depois sobre todas as povoações marítimas, com tanto ímpeto que parecia quererem submergi-las, estendendo os seus limites. Três irrupções maiores, além de outras menores, fez o mar contra a terra, destruindo muitos edifícios e levando muitas pessoas envoltas nas suas águas.

Como era dia solene, estavam as igrejas cheias de gente ficando imensa debaixo de suas ruínas logo que as abóbadas e paredes destas se desfizeram, e caíram. Os que estavam ainda em casa e transitavam as ruas, igualmente uma grande parte foi vítima da mesma calamidade. Os gritos, alaridos, clamores ao Céu pedindo misericórdia, sucedendo-se uns aos outros, tudo consternava e movia a lágrimas. Nem os pais buscavam os filhos, nem esposas os consortes, nem os mesmos bens terrenos eram objecto do amor de seus proprietários; ninguém cuidava senão em salvar a vida, e pedir a Deus a salvação de suas almas.

Tinha muita gente buscado as margens do Tejo para se livrarem dos edifícios, temendo as suas ruínas: porém, entrando o mar pela barra com uma furiosa inundação de águas, fizeram o mais lamentável estrago, passando os seus antigos limites; e, lançando-se por cima de muitos edifícios fez aumentar o horror com a voz vaga que por toda a cidade se espalhou, que o mar crescia.

Logo depois do terramoto, primeiro se começou a ver arder o palácio do marquês de Louriçal, a igreja de São Domingos, o Recolhimento do Castelo, e outros edifícios, em que as luzes, ou fogões das casas, tinham comunicado o fogo aos madeiramentos. Isto, que aumentou as desgraças, fez multiplicar o susto. Jaziam pelas casas muitos doentes que, não podendo fugir, foram vítimas, e consumidos pelo fogo. Viu-se um religioso do Carmo calçado posto em uma janela muito alta, de onde não podia sair para dentro, nem para fora, pedir a absolvição a um sacerdote que passava de longe, e esperar resignado o fogo, que o consumiu.

Continuaram os tremores de horas a horas com menos violência, mas com igual horror, temendo-se que a terra se abrisse com a veemência de tantos abalos. Comunicado o fogo ao castelo correu uma voz que se retirassem todos dos subúrbios da cidade, pelo perigo de pegar à pólvora que ali se achava, e matar os que tinham escapado ao terramoto. Com este susto fugiram quase todos para fora da cidade aquela noite, para uma ou mais léguas. "

Principais sismos, em Lisboa, desde o séc XIV



data, intensidade (MM) náxima em Lisboa e descrição dos danos.
Fonte. Prof Carlos S. Oliveira in Revista da Protecção Civil, Set. 1988

Sebastião de Carvalho e Melo


Quando todos fugiram, Rei (recusou-se a voltar a Lisboa), corte, nobreza, clero, povo, o ministro de D. José I, futuro conde de Oeiras e futuro marquês de Pombal, estabeleceu quartel-general numa tenda no centro da zona arruinada e começou a "tratar dos vivos e enterrar os mortos".

Convento do Carmo



As ruínas ficaram como memória.