2004/07/10

Almada Museu Arte Moderna Posted by Hello
Almada F. Gulbenkian 1968-69 Posted by Hello

Almada Negreiros

auto-retrato Posted by Hello

O Número de ouro! O Número de Ouro! Gritava lá à frente. Eu via-o por cima das cabeças da plateia que enchia a sala.
O número de Ouro! O desafio enchia o salão, fazia ricochete nas paredes e nas telas e ribombava nas nossas caras atónitas. Era Almada Negreiros. O Mestre Almada no seu melhor a provocar os artistas, os estudantes, os homens de letras e outros amantes das artes que enchiam a Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA) na Rua Barata Salgueiro, em Lisboa, no recuado ano de 1956.

No fim de semana fiz um passeio ao Sítio da Saudade. Para além de outras atracções havia Pessoa e Almada e isso fez-me recordar o meu primeiro encontro com Almada Negreiros naquela recuada e célebre conferência.

Não era íntimo do pintor, poeta, escritor, vanguardista.
Fui simplesmente àquela célebre conferência na SNBA que tanto brado deu nos meios culturais lisboetas.
Podeis avaliar o meu espanto. Regressado nesse ano a Lisboa para frequentar o Instituto Superior Técnico, após os dois primeiros anos do liceu, no Paços Manuel, nos anos de 1949/51, tudo o que era manifestações culturais ou políticas me atraía e muitas vezes me deixava quase extasiado tal era a diferença entre Lisboa, mesmo a pouco cosmopolita Lisboa do tempo da ditadura salazarista, e a pacata vila de Torres Vedras onde frequentei o liceu do 3º ao 7º ano. Para já não falar da pacatíssima aldeia do Vilar, no sopé da Serra do Montejunto, onde os infindáveis vinhedos e a omnipresente religião católica, eram a moldura do meu quotidiano.

A conferência - fiz apelo à memória, à minha e à de um amigo grande conhecedor das artes plásticas e se não foi tudo exactamente assim, foi pelo menos quase assim - girou em torno do NÚMERO! O número Mágico, o número Sagrado da Estética. O 7! O 9! o 13! A relação misteriosa entre altura e largura, o quadrado, o círculo, o triângulo, as proporções do objecto, segredo do Belo, do Divino, do Mistério.
Almada acreditava ou ao menos levava-nos a crer que acreditava no segredo de uma relação mágica das proporções do objecto da arte consubstanciada num número secreto conhecido na antiguidade, entretanto perdido e que ele incessantemente buscava.
Tinha a ver com a mística pitagórica dos números, com a ciência da proporção artística na civilização Grega e que os Beneditinos na baixa Idade Média nas suas escolas de arquitectos e mestres de obras nas terras do Sacro Império Germânico conservavam. Tinha a ver com a associação semi-secreta da Bauhütte, continuação daquelas escolas no tempo das cruzadas.

Na SNBA eu ouvia Almada e pasmava. Ocorria-me que ele não estaria no seu juizo todo. Mas foi ideia que ocorreu a muito boa gente ali a meu lado, mesmo a artistas e críticos habituados a êxtases, arrebatamentos, "loucuras" e místicas de homens das artes.
Ou foi nessa conferência ou foi numa exposição do ano seguinte que foram apresentados os célebres quadros abstratos:
Porta da Harmonia,
Quadrante I,
O Ponto de Bauhutte
e Relação 9/10.
Quadros de fundo branco, óleo sobre tela, onde se inscrevem figuras geométricas a traço preto e que se podem ver no Museu de Arte Moderna da Gulbenkian, em Lisboa. Também eles exemplo vivo da busca incessante do NÚMERO por Almada.

As grandes exposições de pintura portuguesa na SNBA eram sempre um grande acontecimento cultural e...político. Et pour cause! A maior parte dos artistas e dos intelectuais em geral estavam contra a ditadura. Por isso as exposições tornavam-se um forum de debate e ataque ao regime. Por vezes o Governo marginalizava este ou aquele artista por ser activo anti-fascista e isso levava a iniciativas de solidariedade e de protesto e a mais pequena coisa se tornava grande e perigosa - não sem razão - aos olhos do Estado Novo.
Almada foi um artista que marcou toda a primeira metade do século XX. Vanguardista e gerador de escândalos com que desejava sacudir a mediocridade tradicional. O seu nome ficou ligado a dois acontecimentos maiores (sem falar da sua vasta obra plástica e literária)da primeira metade do século. Refiro-me ao lançamento, em 1915 do Orpheu, a primeira revista futurista com Fernando Pessoa, Amadeo de Sousa Cardoso, Mário Sá Carneiro, Santa Rita, que ganhou um inusitada fama e é atacada pela figura tutelar da cultura tradicionalista de então, Júlio Dantas, escritor, poeta, dramaturgo. O outro acontecimento, que criou enorme escândalo é o Manifesto Anti-Dantas em que Almada, uns meses depois, arrasa Júlio Dantas e o "burguês".

Manifesto Anti-Dantas e por extenso.
O manifesto não é apenas contra Dantas. É uma reacção contra uma geração tradicionalista, uma sociedade burguesa, um país limitado.

... Basta PUM Basta!
Uma geração, que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d’indigentes, d’indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero! Abaixo a geração!
Morra o Dantas, morra! PIM!

No fim assina: POETA D' ORPHEU, FUTURISTA E TUDO"

(in http://www.vidaslusofonas.pt/almada_negreiros.htm )

Almada está aí, a cada passo, por Lisboa. Nos painéis das Gar Marítima de Alcântara e Rocha da Conde de Óbidos. No atrium do Museu Gulbenkian, no Tribunal de Contas, nos vitrais da Igreja de Fátima.

Almada Negreiros (filho)

Um pouco mais tarde, em 1960, conheci o filho, José de Almada Negreiros, com o mesmo nome do pai. Cumpríamos, com mais uns sete ou oito rapazes, o serviço militar obrigatório em Torres Novas, como aspirantes a oficial miliciano. Alguns tornaram-se figuras públicas. Um a que na altura não prestámos grande atenção chamava-se Belmiro de Azevedo, viria a fazer uma fortuna talvez maior que a nossa. Outro, o José Bernardino, ganhou fama como revolucionário e dirigente comunista. Constituía com os irmãos e demais família, um célebre clã, com sede na Avenida de Roma em Lisboa. Mais que residência era um verdadeiro centro de formação política e cultural de estudantes universitários, mormente do Técnico, e também de conspiração anti-fascista. José bernardino tínha-me recrutado para o PCP uns meses antes quando, na tropa em Cascais, fazíamos a recruta. Dois anos depois foi preso pela PIDE, foi terrivelmente torturado e passou na cadeia uns seis anos. Do Zé Bernardino dizia-se que na PIDE, no meio das torturas, não só não denunciara ninguém como nem sequer o nome dele declarara à polícia.

O convívio no quartel do GACA 2, em Torres Novas, o passar o tempo na vila, onde todos se encontram e as conversas nas viagens em conjunto, para Lisboa, deram para conhecer e fazer amizade com o jovem culto e fazedor de amigos que era o José de Almada Negreiros.
Cada um seguiu a sua vida mas em 1974 reencontrámo-nos. Ele queria conversar comigo sobre a clandestinidade donde eu acabara de sair. E eu queria voltar a conversar com ele. Com o Ernâni Pinto Basto, um dos aspirantes a oficial miliciano de Torres Novas, e amigo comum, fomos jantar ao Restaurante do Velho Moinho. Eu e o Ernâni chegámos nuns carritos plebeus de 1.200 cm3 de cilindrada e quase ao mesmo tempo chegou o Almada num vistoso Porsch que custaria tanto como uns dez dos nossos. Fingindo-se incomodado com a diferença de status exposta pelos carros (em 1974, com a revolução em crescendo, politicamente correcto era a igualdade. Igualdade por baixo, claro!) Almada depois dos abraços de quem não se vê há uns anos exclamou:
- Eu não tenho dinheiro para comprar carros desses. Não posso andar a comprar carros todos os anos! Tenho de comprar um carro que me dure uns quatro ou cinco anos.